Em 2000, o Congresso Nacional instituiu o 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi escolhida em memória de Araceli Cabrera Crespo, menina que foi vítima de assassinato há 50 anos, em Vitória. Em 1973, o corpo de Araceli, que tinha 8 anos, foi encontrado dias após ela ter desaparecido na saída da escola. Pelos indícios, concluiu-se que ela foi violentada e morta.
Dois herdeiros de famílias poderosas do Espírito Santo, Dante de Barros Michelini e Paulo Constanteen Helal, foram acusados de drogar, estuprar e matar a menina. Além disso, o pai de um deles, Dante Brito Michelini, foi acusado de contribuir com o crime e usar sua influência para atrapalhar as investigações. Todos se declaravam inocentes e, apesar de terem sido condenados no primeiro julgamento, foram inocentados após recurso.
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Em entrevista à Rádio Nacional, com transcrição reproduzida pela Agência Brasil, eles explicam que o objetivo da obra é revelar as lacunas da investigação que contribuíram para que a morte de Araceli ficasse impune.
P: Por que vocês se interessaram em recuperar as informações sobre o caso?
Felipe: Sempre foi um caso de repercussão muito forte aqui no Espírito Santo. Eu já via alguns jornalistas mais antigos e mais experientes do que eu falando sobre o caso e percebi que este era um tema de grande relevância social e de grande importância para a discussão sobre a violência contra crianças e adolescentes, né? Aí, veio a ideia de tentar contar o que foi essa história e tentar repercutir também a compreensão do que era naquela época, e o que é hoje, o tema da violência. Então, acho que a ideia central foi discutir o crime para compreender as etapas de todo o processo e também como isso influencia e se repete hoje no Brasil.
P: O livro tem o subtítulo Mistérios, abusos e impunidade. Por que vocês trazem a palavra “abusos” no plural?
Katilaine: A palavra abuso lembra primeiro a própria violência que a menina sofreu, mas também a exploração que fizeram de todo o caso: exploração política, exploração midiática… E a exposição que a família sofreu com tudo isso também é um abuso, especialmente a mãe dela. Que foi vítima, quando perdeu a filha, e ainda é vítima quando associam a ela uma responsabilidade pelo crime. Uma coisa que se cita muito é que ela pediu para a filha ser liberada mais cedo da escola no dia do crime, como se não tivesse sido uma decisão familiar. A segunda coisa é que alguns jornais da época chegaram a afirmar, com toda certeza, que ela conhecia alguns dos acusados e até que ela aliciava a filha. E não há nenhuma prova disso. E a gente acha que essa é uma questão atual porque até hoje se veem mães de vítimas sendo abusadas também. Às vezes, a mãe nem estava no local do crime, cometido pelo pai ou padrasto da criança. A mãe nem está sabendo da situação, mas leva a culpa de uma violência que ela não fez.
Felipe: Houve também o abuso das próprias autoridades: a leniência, a demora na investigação, a demora no julgamento. Por exemplo, os restos mortais dela ficaram três anos retidos aqui em Vitória, enquanto as investigações corriam, antes do enterro dela na cidade de Serra. Isso é um abuso, né? Isso é uma violência tremenda.
P: O caso se tornou símbolo da luta contra a violência sexual infantil, e sempre pareceu muito resolvido. Quais os mistérios que vocês encontraram?
Katilaine: O processo, que tem 33 volumes e 12 mil páginas, tem muitas lacunas. Não está dada a narrativa do que aconteceu. É um reflexo do que foi a qualidade da investigação, a omissão da investigação. Uma mistura de incompetência com má vontade proposital. Até hoje não se sabe onde Araceli foi morta, por exemplo. Especula-se que não foi no local onde foi encontrada porque tinha o corpo dela nesse local, mas não tinha mais nada dela. Ela estava sem roupas, não tinha o material escolar que usava quando saiu da escola, não tinha mais sangue no corpo dela. Inclusive há dúvidas de quanto tempo ela ficou ali até ser encontrada, o que é um dos pontos que a defesa dos acusados usa para quebrar a narrativa do Ministério Público.
Felipe: O livro também vem para tentar colocar luz sobre essas questões. A gente tem que levar isso para a década de 70. Que contexto era aquele? Que polícia que era aquela? Que Espírito Santo era aquele? Agora em 2023 ainda existem casos que ficam sem uma definição, então, imagina isso em 73, na ditadura militar. A gente tenta também ver com o olhar e a estrutura daquele tempo. Mas a polícia, mesmo nessa situação, deveria ter feito uma investigação mais organizada. Como que o principal caso judicial do Espírito Santo, a gente não sabe onde foram parar as fotos produzidas pela polícia, que sumiram? O Carlos Éboli, perito conhecido do Rio de Janeiro, veio ao Espírito Santo para analisar o caso e, quando ele voltou ao Rio, escreveu uma carta para dizer que acreditava que pessoas de grande poder econômico estavam envolvidas para que apagassem as provas. A dinâmica do crime é uma lacuna. Há uma dúvida se ela foi sequestrada a pé, se foi sequestrada de um carro. Onde aconteceu a morte dela, quando aconteceu.
Katilaine: Ao longo de todo o processo, há várias citações a pessoas poderosas que podem ter influenciado no desaparecimento das provas, sem citar os nomes. Depois, esses nomes vão aparecendo. Há insatisfações até entre os policiais quanto a interferências externas no caso. Um dos acusados participou das diligências. O leitor pode avaliar e dizer se acha que eles são inocentes, ou culpados, mas essas reclamações existiam dentro da própria polícia também. Outra lacuna é que se concluiu que ela foi abusada sexualmente pela forma que ela foi encontrada, pelas características desse tipo de crime. Mas não foram produzidas provas disso.
P: Muitos conteúdos de true crime, de investigação sobre crimes misteriosos têm sido feitos atualmente, e muitos deles tentam desvendar a verdade sobre esses crimes. Mas esse não é objetivo do livro de vocês, não é?
Felipe: Nossa ideia sempre foi contar uma história. Nós somos jornalistas, então, buscamos o processo judicial, entrevistas e também material da imprensa. Nosso foco foi apurar as informações a partir do processo, para desfazer alguns boatos, para conferir o que batia com o que as autoridades falavam. Às vezes, a gente acha que conhece uma história, mas, quando vai ver a documentação, é outra realidade. E o leitor precisa entender que essa documentação também precisa ser questionada, que é uma fonte oficial como outra qualquer. E aí a gente procura confrontar as fontes possíveis para tentar contar a história. É a primeira vez que o caso Araceli é discutido com as informações do processo. Desde o início, a ideia não foi trazer uma possível descoberta do que aconteceu no sentido de uma trama policial, mas tentar fazer uma relação com a situação atual da violência contra as crianças. Os acusados foram condenados em primeira instância em 1980, mas não chegaram a ficar presos, só ficaram presos preventivamente antes da condenação. Aí, eles recorreram da sentença, e ela foi anulada mais de 18 anos depois do crime, em 91. O livro também mostra esses entendimentos diferentes. Um juiz acha que tem as provas; outro juiz acha que não tem, analisando o mesmo material. São mais de 300 depoimentos que o livro também tenta mostrar, além dessas mudanças de entendimento jurídico ao longo do tempo.
P: Além da análise documental, quem vocês entrevistaram?
Katilaine: A gente tentou ouvir os personagens principais dessa história. As famílias da Araceli e dos acusados, e, conseguimos falar com dois irmãos dela, falamos com o rapaz que encontrou o corpo e com pessoas que viveram a época. Jornalistas que viram de perto o que aconteceu. Mas a gente se deparou com pessoas com muito medo de falar, até hoje. Algumas pessoas disseram, em off (de forma confidencial), que foram ameaçadas e não queriam dar entrevista.
Felipe: Os jornalistas deram um pouco do contexto da época para ajudar a gente a analisar o material da Imprensa e do processo judicial. Eu conversei com um dos advogados da família Michelini e com o advogado da família Helal, que chegou a marcar entrevista, mas depois desmarcou. Mas, infelizmente, algumas testemunhas ainda têm receio. Como é que, 50 anos depois, esses silêncios ainda marcam o caso?
P: Uma das principais avenidas de Vitória se chama Dante Michelini, em homenagem ao avô de um dos acusados. Isso sempre foi uma grande polêmica. Como vocês veem essa questão?
Katilaine: Isso é algo que ainda mexe muito com o sentimento dos capixabas. Sempre é uma discussão, algum vereador ou vereadora tenta mexer na lei para mudar o nome da avenida, e a gente tem percebido que é uma pauta dos leitores. Talvez pudessem jogar a responsabilidade para a população decidir a melhor alternativa, manter o nome ou adotar outro.
Felipe: Vale a pena explicar um pouco o contexto. Quem foi Dante Michelini? Ele foi um cafeicultor aqui no Espírito Santo, presidente do Centro de Comércio de Café na década de 50. Ele morreu em 1965, antes do crime. E ele é pai do Dante e avô do Dantinho, que foram dois dos acusados pelo crime. Mas a avenida tem outras contradições. O Bar Franciscano, para onde a menina Araceli teria sido levada, segundo a denúncia, ficava também nessa avenida. E, no final dela, existe hoje um Memorial da Araceli. Já passaram alguns projetos na Câmara de Vitória para tentar mudar o nome [da avenida], e todos foram rejeitados. Eu defendo a ideia de, que 50 anos, tá na hora de fazer uma consulta popular, para a população saber de toda a história e opinar se quer, ou não, que essa avenida mude de nome.
P: Qual reflexão o livro de vocês faz sobre os casos atuais de violência contra crianças e adolescentes?
Felipe: Cinquenta anos depois, ainda é um caso atual, porque tem muitos casos similares a ele. Casos com extrema visibilidade e que não tem culpados apontados a contento, a ponto de serem considerados os verdadeiros culpados pela Justiça. Se, no caso desse, com essa visibilidade, não teve uma conclusão, imagina em casos que não têm a mesma visibilidade. A gente pensa esse livro como uma forma de jogar na nossa cara, como sociedade, essas questões. No livro, inclusive, há capítulo dedicado a casos mais recentes e semelhantes. É uma história que tem que ser contada para que inspire outras pessoas a continuarem buscando respostas, não somente no sentido punitivo, mas de não deixar acontecer. De mexer com a cultura da sociedade que permite que esse caso continue atual.
Katilaine: Quando a gente vê a investigação do caso, percebe muito a falta de cuidado. Tem um caso mais recente que a gente cita, que só foi desvendado porque a mãe correu atrás. Ela denunciou o desaparecimento da filha, a polícia não empreendeu um esforço visível, então, a própria mãe investigou e descobriu imagens de videomonitoramento do momento em que a filha foi sequestrada e, a partir disso, chegaram ao abusador, que apontou onde estava o corpo da menina. É um absurdo esse tipo de coisa acontecer. As crianças não têm seus direitos legais respeitados até hoje. Outro caso recente, que também que virou assunto nacional, foi o de uma menina violentada, que foi engravidada pelo abusador e teve seus dados vazados pelo poder público. Isso é absurdo, e não é um caso antigo de 50 anos, isso aconteceu agora.
Felipe: A ideia de contar esse passado é como ele pode nos ajudar a entender esse presente de permanência da violência. Os dados mostram que são quatro meninas de até 13 anos estupradas por hora no Brasil. São dados alarmantes, que ainda são subnotificados. São os que chegam às autoridades. E a gente não pode esquecer que é uma série de violências, não é? A impunidade também é uma violência. Cinquenta anos depois, a gente olhar o que aconteceu com a Araceli, e os desdobramentos disso, é jogar a luz para esse momento atual de permanência da violência contra criança e adolescentes. E a gente tem projetos de continuar trabalhando com este e com outros casos de violência no Espírito Santo. E quem sabe um dia ele deixe de ser um exemplo de impunidade.