Música erudita

Arte integral na Empem

Sob o espírito de Goethe e ao som de Mahle, me encanto com a dança cadenciada das almas

Romualdo Cruz Filho
30/11/2022 às 09:14.
Atualizado em 30/11/2022 às 09:15
Maestro Ernst Mahle, explosão de sons diferentes (Rodrigo Alves)

Maestro Ernst Mahle, explosão de sons diferentes (Rodrigo Alves)

No dia  19 de novembro, ouvi com minha família a obra Concerto 2012, para cordas, piano e percussão, composta pelo maestro Ernst Mahle e apresentada na sala Dr. Mahle, da Escola de Música Maestro Ernst Mahle (Empem), pelos músicos da Orquestra Jovens Músicos, comandada pelo maestro Anderson Oliveira. Foi uma noite intensa e no mínimo, provocativa. 

Ao lado de Mahle, foram apresentadas nada menos do que peças do austríaco Wolfegang Amadeu Mozart e do norueguês Edvard Grieg, outros dois fenômenos do setor. O programa previa que Concerto 2012 seria o segundo da série, até que Anderson disse: "Vamos deixar o melhor para o final". O casal Mahle (Cidinha e Ernst) estavam presentes e a mensagem estava dada. 

Chegou o momento. Para quem entende de música erudita - não é o meu caso - deve haver uma explicação técnica mais elaborada sobre o trabalho do alemão caipiracicabanizado, que dedicou sua vida à composição de obras de alta qualidade, tocadas mundo afora com grande repercussão, apesar de serem relativamente desconhecidas em sua própria cidade de adoção. O que mais se conhece do que ele produziu são a composições para formação musical dos seus alunos e trabalhos de câmara para o mesmo fim.

Concerto 2012 é uma peça de fortes emoções. Concluída, salvas de palmas sem fim. Rua. Enquanto eu refletia sobre o que aquela música havia provocado em meu sentimento e memória, meu filho, que é aluno de piano da Empem, me perguntou como seria o processo criativo de Mahle para chegar àquela explosão de sons diferentes, "àquela louca". E completou: "Seria interessante compreender, não acha?" Como nos próximos dias o maestro estaria em pessoa de volta à escola, a sugestão foi que ele perguntasse ao próprio compositor. Assim o fez.

Marcos Santana me contou que Mahle detalhou sua fórmula: "Pego um papel amarelado logo de manhã e faço os primeiros apontamentos. Depois sento diante do meu computador, para onde transfiro os apontamentos, e as notas vão me dando o caminho para seguir adiante. Até que, depois de certo tempo trabalhando encima de algum resultado, tenho a obra pronta". Simples né? Evidente que a dúvida do meu filho deve se alongar ainda por muitos anos, se é que um dia encontrará a resposta que Mahle não deu.

Assim que ele falou sobre a conversa com o maestro, lembrei de antigos debates acadêmicos sobre produção literária, em que havia sempre aquela corrente de escritores que seguiam as pistas construídas pelas próprias palavras, no processo criativo, sem um roteiro prévio que apontasse o começo e o fim da obra. Essa era uma tendência postulada pelos românticos.

Mahle, como discípulo de Goethe, sempre se entregou às forças da natureza, como se a vida fosse o encontro de uma imensa diversidade de almas e energias, que se relacionam e se contrapõem, e ele seria apenas um espírito observador capaz de compreendê-las e construir roteiros musicais a partir dessa compreensão. 

O espírito do amor, ódio, fúria, vingança, serenidade, malignidade e até racionalidade convivendo e contracenando com o espírito do vento, da luz, da tempestade, do frio, da noite, da magia, etc. Esta teria sido uma das formas propostas pelos românticos para superar o filósofo Kant e demonstrar que a razão não se apartava da natureza, como sendo algo incapaz de penetrar na coisa em si, como se estivesse apartada do conhecimento da coisa em si. Pelo contrário, as emoções humanas também faziam parte dessa dialética do saber e eram capazes de alavancar os segredos do mundo, inatingíveis pela ciência.

A bifurcação, para Goethe, seria, na interpretação de Mahle, apenas uma encruzilhada de uma macumba à brasileira, recriada, portanto, com elementos nacionais. Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros escreveu um belo livro sobre Estudo do Conceito de Harmonia, em Mahle, relacionando o maestro com Rudolf Steiner e Wolfegang von Goethe, ambos mestres do compositor e românticos/racionalistas de quatro costados, além de estudiosos (criadores) da antroposofia, que deu origem às escolas Waldorf. Gulherme aproxima Mahle da antroposofia e vê nesse contato com a filosofia alemã sua força motriz criativa. No plano literário, Fausto, de Goethe, seria a grande obra resultante desse processo criativo de intensidade máxima. E Mahle conhece esse mundo mágico e misterioso como ninguém.

A Composição Concerto 2012: um simples leitura

Na diversidade de emoções sugeridas por Mahle em Concerto 2012, para dois pianos, cordas e percussão, me vi em um espaço urbano, onde a vida segue em ritmo frenético, com emoções doloridas, de convivência humana em um processo fortemente alienante e repetitivo, dramático até, mas que é suplantado gradativamente pelo senso de humor do artista, que bota ânimo no clima. 

Tanto é que aos poucos ele suaviza o peso da situação e vai transformando a maquinaria do dia a dia em uma festa ritmada, com muitas nuances criativas, em que o humano se sobressai, mas o anonimato torna-se personagem principal, como um espírito coletivo. A casa/metrô/trabalho/marmita/trabalho/metrô/casa é, portanto, um espírito e torna-se boemia, com pitada em poesia e música dançante, sem perder a marcação do compasso cadenciado da vida como ela é, dura e martelante. 

Mahle é o mestre dessa mudança de perspectiva, de colocar cor, luz e emoção onde tudo parece cinza. Até que ele morre (na minha intepretação da obra, claro). Há um choque geral pelo acontecido e os anônimos se empalidecem com a notícia. Mas da tristeza inicial vem a aceitação de sua mensagem. Como Goethe, o espírito de Mahle continua falando de longe à humanidade, para que não se perca a luz e a versatilidade no enfrentamento da rotina, porque senão a sombra obscurece o encanto da vida e tudo se esvai. Novamente o ritmo se intensifica e na batida casa/metrô/trabalho/marmita/trabalho/metrô/casa se soma o happy hour, a mescalina natural de cada um, a criatividade que precisa ser potencializada para a festa. A toada se mantém com altos e baixos. Uma apoteose.

Até que a humanidade se recorda novamente que Mahle morreu e fica muito triste. Novamente ele sai do seu sono eterno e volta a soprar na sonolência da manhã, no descolamento de ar do metrô, no repique da marmita, no vento da noite, na gargalhada provocada pelo primeiro copo de chope, na solidão, que a vida vale a pena. Ela é dramática, faz a gente sofrer mesmo, mas ninguém tem controle sobre ela, a não ser nós mesmos, que precisamos compreender isso, compreendendo o mundo dos espíritos.

A gargalhar da bruxa enfeitiçada pela luz da manhã, que tenta espantar o sorriso maquiavélico de Mefistófeles, se fortalece na gargalhada de outra bruxa, e assim vão tecendo o céu do amanhã, como os galos de João Cabral de Melo Neto. Uma bruxaria saudável, de um Goethe brasileiro, que nos ensina a viver. Isso é Mahle em sua obra analisada.

Sei que não traduzi nada de Mahle, porque cada um tem um ouvido e uma formação diferente para perceber o que acontece ao nosso arredor. Além de que não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem. Sem plágio, por favor! Gostaria ao menos que esse texto despertasse para o insondável que há na obra de Mahle. O papel amarelado citado acima pelo compositor é apenas o Aleph (by Borges) pelo qual ele mergulha em outro mundo, só dele. Descobrir que há esse mistério e essa janela para a arte integral já estaria de bom tamanho.

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