Zico é contador formado e quase virou pianista, mas se transformou num dos maiores craques do futebol brasileiro. Ele não teria sido o grande artilheiro das copas mundiais sem tabelar com o meio-fio, as paredes ou pisar nos campos de terra batida, como conta no prefácio do livro "Futebol-Arte do Oiapoque ao Chuí" (Grão Editora, 260 págs., R$ 125), do fotógrafo Caio Vilela, já disponível nas principais livrarias. A pelada, escreve Zico no prefácio, "é tudo na vida de um jogador". Como diz, arrebenta com o dedão do pé, faz sangrar, mas sem ela Zico não teria aprendido a jogar bola. O jogador é capaz de lembrar de todos os gols que fez nas peladas de subúrbio, alguns "mais bonitos do aquele de voleio contra a Nova Zelândia na Copa de 1982". E note que Zico estava no auge na época, sendo então considerado, aos 29 anos, o melhor jogador do Brasil.
Foi atrás dos futuros craques que o fotógrafo Caio Vilela percorreu todos os Estados brasileiros, de Norte a Sul, depois de registrar peladas nos desertos árabes, nas savanas africanas e nas montanhas do Himalaia. Descobriu vários, mas lembra particularmente de um - que não é um, mas uma, Ana Paula dos Santos Moreira, de 11 anos, moradora de uma comunidade quilombola do interior de Goiás. "Estava com o Eduardo (Eduardo Petta, autor do texto do livro) num campinho de terra batida quando ouvi um grito que foi crescendo, 'Vai, Paulinha, chuta', e, quando me virei, vi uma garota veloz driblando o zagueiro e invadindo a área." Paulinha não está no livro, mas há nele fotos de outros craques das terras kalungas.
"O desafio foi fazer um livro que não fosse monótono", conta Vilela, torcedor corintiano (e pai de três são-paulinos) que, apesar de vidrado em peladas, adora a folia dos estádios de futebol. "No entanto, para mim, o verdadeiro futebol está longe da cartolagem, nos campos invadidos pelas marés, no chão de terra batida", diz. Naturalmente, sua pesquisa para encontrar esses campos foi mais exaustiva, também porque os craques, tanto quanto seus times e peladas, são voláteis. Formam-se ao acaso, em terreno irregular, traves improvisadas e bolas não oficiais, como mostra a legenda de uma foto publicada na página 45 do livro, em que um adolescente dribla dois guris com uma bola furada.
A capacidade criativa dos craques de subúrbio supera qualquer barreira: traves são construídas com tocos de madeira, tijolos servem para demarcar a área do goleiro, cocos podem servir de bola e qualquer hora é hora para praticar o esporte que, como conta Eduardo Petta no livro, foi introduzido em 1880, no fim da escravidão, por padres vicentinos e jesuítas, que trouxeram as primeiras bolas de capotão. Seriam necessários ainda 14 anos para que o paulistano Charles Miller (1874-1953), filho de um escocês, trouxesse da Inglaterra um livro com regras rígidas e uniformes, oficializando o futebol. Em 14 de abril de 1895, num gramado da Várzea do Campo, entre as ruas Santa Rosa e do Gasômetro, em São Paulo, "a redonda quicou no gramado", relata Petta no livro.
De lá para cá a história é mais ou menos conhecida (ainda que contestada, pois há quem defenda ter sido o escocês Thomas Donohoe o introdutor do esporte em terras brasileiras). Não é a história, porém, o tema do livro. Vilela está interessado em fotografar craques e registrar o contexto em que vivem. Desde 2004 ele atua como freelancer de jornais e revistas, aproveitando viagens de trabalho para mapear os campinhos de várzea e os Zicos da periferia. Em 2009, o fotógrafo publicou "Futebol Sem Fronteiras" (Panda Books), que resultou na exposição "Ora Bolas! O Futebol pelo Mundo", realizada em 2010, no Museu do Futebol, em São Paulo. Convidado pelo governo do Catar para produzir material sobre o esporte nos países árabes, Vilela projeta para o futuro um outro volume sobre o futebol de rua em todo o mundo.