(Arquivo/Gazeta de Piracicaba)
Piracicaba apresentava um perfil semicolonial até à década dos anos setenta do século XIX. Uma economia voltada para a agroindústria açucareira, café, alimentos e pecuária. As elites desta procedência dominavam na Câmara Municipal e na política, como monarquistas divididos entre liberais e conservadores. Chamada oficialmente de Constituição, os seus espaços socioculturais eram limitados, a visão de mundo a aproximava dos modelos ituanos da sua matriz povoadora.
A sociedade apresentava um perfil acaboclado pela forte presença do sangue índio dos tempos coloniais, já de mistura com os afros do sistema escravista de produção. As transformações vieram com a participação de elementos de visão, voltadas para o progresso que se instalava em São Paulo, a tecelagem de Luiz de Queiroz, a ponte dos irmãos Rebouças, a ferrovia Ytuana, o engenho Central do Dr. Estevão de Rezende, o republicanismo dos irmãos Moraes Barros, Manoel e Prudente, as experiências com o trabalho livre de origem imigrante e, finalmente, o saneamento urbano na última década, promovido pelo Dr. Paulo de Moraes Barros.
Piracicaba experimentou os efeitos das crises econômico-financeiras e políticas do século vinte, durante a chamada Primeira República. A desordem na economia e a inflação, a praga do carvão que dizimou os canaviais, a superprodução cafeeira e o crack de 1929, as Revoluções de 1924 e 1932, as quebras e falências generalizadas que abateram as antigas elites, abriram espaços que foram ocupados por segmentos da classe média associados aos emergentes da imigração. A política permanecia em mãos da gente da terra e a Câmara Municipal, fazia o seu trabalho morno, sem conflitos ideológicos, voltada para a boa administração.
O PRP ditava as ordens e o prefeito Fernando Febeliano da Costa tornou-se o modelo dos gestores urbanos. A sociedade rapidamente, incorporava os elementos arrivistas, italianos, espanhóis, sírio libaneses, portugueses e judeus, com as suas novas expectativas e vontade de vencer. Pequeno comércio, pequenas indústrias, acompanhavam o ritmo do país. O visual urbano permanecia modesto e não impressionava os visitantes, salvo quanto às belezas naturais do beira rio e do Salto.
A verdadeira transformação ocorreu no campo do Saber, na criação das escolas primárias e secundárias, Escola Normal e Escola Agrícola, no ensino rural e na produção do Saber, destacando a cidade, que só perdia para a capital em número se escolas. O Ateneu Paulista foi integralizante e toda família de classe média desejava possuir um filho doutor e uma filha professora. A modernização filtrou pelas áreas do Saber e a mulher iniciou a sua profissionalização.
Aqueles que participaram da segunda metade do século XX, têm em mente as grandes transformações operadas na economia e na sociedade. O parque industrial voltado para a agroindústria começou a se diversificar, o crescimento da população acelerou-se, a sociedade incorporou as novidades e a televisão invadiu os lares. Viveu-se os chamados “anos dourados”, sob muita pressa e logo as saias godê guarda-chuva cederam aos tubinhos, mais práticos de usar e manter.
Profissionalizar-se foi aspiração dos jovens, integrar-se ao mercado de trabalho exigia políticas progressistas e gestores de visão. O políticos coronéis cederam lugar aos comendadores e estes aos técnicos, saídos da universidade e de viés ideológico competitivo dentro do quadro geral do país. A mistura dos sobrenomes de família dava conta da diversidade social que se manifestava nos espaços da indústria e do comércio, nos quadros gerais da população.
A rua Governador Pedro de Toledo, além de ser o corredor comercial da cidade, era uma amostra dessa sociedade integrada. Os comerciantes e suas respectivas famílias eram conhecidos pelo sobrenome, os Maluf, os Gatti, os Cardinali, os Polacow, os Sales. A cidade se expandia e bairros se tornavam centros de vida urbana, Cidade Jardim, Pauliceia, São Dimas.
As faculdades recebiam forte demanda da parte daqueles que trabalhavam durante o dia e desejavam estudar à noite. Uma forte classe média fazia chegar as suas reivindicações às esferas do poder e elegia representantes com poder de negociar. Grandes progressos acompanhados dos seus contrários, imensos problemas, o mais grave, a reversão das águas do rio Piracicaba para a criação do sistema Cantareira de abastecimento de capital. De repente, as coisas pareceram sair do controle, as famílias não se reconheciam no meio da avalanche de gente nova atraída de longe, e os chamados “anos de ferro” intensificaram o fenômeno.
O visual urbano foi bastante modificado entre os anos de oitenta e noventa do século XX. O crescimento imobiliário e a verticalização das construções, os novos bairros, a erradicação dos edifícios históricos, casarões, sobrados e o Hotel Central, são amostras de uma nova forma de viver e de pensar, diante das possibilidades incontáveis de crescimento econômico no final do século. A população parece haver explodido, não se conhecia mais ninguém, onde estavam as antigas famílias que se sentavam à porta antes da novela do rádio?
Desapareceram os negociantes da Governador, cederam lugar às lojas de departamento, filiais nacionais ou estrangeiras. Sim, é o progresso. Na rua XV de Novembro, sobem multidões irreconhecíveis, saídas da rodoviária municipal e o velho corredor comercial disputa com outros centros, igualmente lotados. De onde veio tanta gente desconhecida, a triplicar a população da cidade em meio século? Certamente respondem os seis Distritos Industriais e as 40 mil empresas de grande, médio e pequeno porte, criadas nas últimas décadas, bem como as universidades e escolas públicas e particulares, a rede hospitalar, os transportes, os parques ecológicos e os novos centros de moradia. Temos pela frente uma nova Região Metropolitana e Piracicaba como sede.
O século XXI nos espanta pelas suas infinitas possibilidades de transformação, também pelas incógnitas negativas que poderão vir a se materializar. O processo histórico é constituído nos Agora, podemos representar o passado, analisar o presente, mas o futuro oferece uma paupérrima dialética, a Deus pertence como reconhecemos. Voltando os olhos para aqueles idos do século XVIII, à boca de sertão onde se confinava, ao redor do estaleiro do Capitão Antônio Corrêa Barbosa, a primitiva povoação de Piracicaba, com os seus 183 habitantes (censo de 1773), entramos em perplexidade. Só as Américas oferecem esse fenômeno, quando comparadas à Europa e Ásia.
Deixo aos leitores a imagem saudosista de 256 anos atrás. A monção povoadora do Barbosa em seis grandes canoas, apontando na última curva do rio Piracicaba, sob valente trabucada daqueles que já aguardavam em terra, junto ao porto. Tremulando na proa da nau capitânia, a milagrosa bandeira do Divino Espírito Santo, no coração dos homens, mulheres e crianças a esperança que premoniciava uma grande cidade. Tem forte cobertura de razão, o nosso querido vate : -- Piracicaba, que adoro tanto...
Marly Therezinha Germano Perecin é professora e doutora em história social, autora de alguns das principais pesquisas documentais sobre Piracicaba