Sud Mennucci

Cápsula do tempo e fatos históricos despertam mais reflexões

Se a caixa de cobre foi entranhada na parede apenas em 1922, na ocasião a instituição já estava com 25 anos de existência e cinco anos de sede nova

Romualdo Cruz Filho
11/09/2022 às 11:10.
Atualizado em 11/09/2022 às 11:24

“O grito do Ipiranga”, 7,60 m x 4,51 m, Pedro Américo, 1888. Museu Paulista/USP, SP (Pedro Américo/Quadro)

A diversidade de datas relativas à recém-aberta cápsula do tempo do colégio Sud Mennucci, no dia 7 de setembro, quando da comemoração do bicentenário da Independência do Brasil, chega a confundir o leitor sobre os fatos históricos envolvidos na iniciativa. A instituição de ensino original começou a funcionar como Escola Complementar em 1897, na Rua do Rosário, em área central da cidade. O enorme prédio do colégio Sud Mennucci, como o conhecemos hoje, no quadrilátero das ruas XV de Novembro, São João, Dr. Otávio Teixeira Mendes e Bom Jesus, começou a ser construído no dia 5 de julho de 1913 e não há qualquer informação sobre cápsula do tempo até então.

A inauguração dessa nova sede se deu em 11 de agosto de 1917, quando a escola já estava com 20 anos, segundo informações da Câmara Municipal, e contava em seu portfólio com a diplomação de 16 turmas de professores de ensino primário.

Portanto, se a caixa de cobre foi entranhada na parede apenas em 1922, na ocasião a instituição já estava com 25 anos de existência e cinco anos de sede nova. Sendo assim, fica claro que a cápsula não teve a função de ser um marco de fundação, mas foi pensada para registrar a data do centenário da independência do Brasil, segundo o então diretor da escola Honorato Faustino. Tanto é que foi aberto um local especial para colocá-la na sala de entrada, com placa de identificação bem posicionada, em uma obra já concluída e em pleno funcionamento.

O próprio Faustino assina um texto publicado no Jornal de Piracicaba que traz novas pistas para estudos sobre datas históricas, uma vez que ele trata da matéria em edição que circulou do dia 15 de Novembro de 1922, quando se comemora a Proclamação da República (1889). Apesar da aparente bagunça, o assunto começa a fazer sentido quando sabemos que de fato a Escola Normal fez parte de um gigantesco projeto de educação nacional que nasce com a Proclamação da República, data que se torna marco de uma nova era somente a partir da Independência do Brasil. Sendo assim, a data da publicação do artigo de Faustino tem um significado enorme e demonstra lucidez histórica.

Uma Independência frustrante

A historiadora Marly Therezinha Germano Perecin afirma que a Escola Normal nasceu em um período de ampla discussão sobre a identidade nacional, em que se buscava fundamentar o conceito de povo, que até então não passava de “uma ficção jurídica”. Em 1897, com a fundação da Escola Normal, estávamos há 8 anos da República e a elite intelectual envolvida na construção de um projeto para a educação brasileira entendia que sem o acesso às salas de aula a todos os brasileiros, especialmente as crianças, o país jamais sairia de sua condição de privilegiar apenas minorias. “A partir da República, temos então o entendimento de que a educação é a porta de entrada para a cidadania e que no Brasil havíamos passado por 300 anos de colonialismo e mais 65 anos de império sem qualquer avanço no sentido de dar voz ao povo brasileiro. Durante a primeira fase, havia apenas a elite portuguesa e econômica como privilegiados. Na segunda, a aristocracia branca e empresarial. Ficavam de fora desse contexto todos os pobres da terra, índios, negros e brancos, inclusive os recém-chegados, imigrantes. Este era o povo excluído, que passa a ser percebido apenas após 1889”.

O fato de Honorato Faustino ter tratado da cápsula do tempo apenas na comemoração da República é uma demonstração, se não proposital, pelo menos providencial sobre a importância de se repensar o Brasil a partir desse novo marco histórico. Em um estudo sobre “Os Caminhos da Liberdade no Oeste Paulista (1750-1846)”, Marly Perecin escreve: “(...) Povo era o resto que sobrava do clero e da nobreza, de todos os matizes de tez. (...) o terceiro estado, o dos pés rapados, recém-saídos da escravidão, dos artesãos, dos peões e camaradas, dos jornaleiros. Outras subcategorias se inseriam no contexto social da época, no interior das propriedades rurais das próprias relações de família. Amestiçados, vivendo em roças alheias ou posseiras, fazendo-se de gente ou povo dos Diretores de povoações, de mumbavas em sítios de parentes, de agregados”.

Estamos falando também aqui, evidentemente, do caipira em geral. Este olhar era o mesmo que levou o eminente professor Sud Mennucci, formado na Escola Normal em 1910, a defender as escolas rurais. Estava mais do que claro para ele que a população da roça, que era a maioria dos habitantes da cidade, também deveria ter acesso aos estudos básicos para superar as condições precária e de miséria em que viviam. Pela sua dedicação por Piracicaba e ao ensino básico, a Escola Normal ganhou o nome de Sud Mennucci que, por sua vez, foi fortemente criticado por professores da linha escola nova que não compreendiam a profundidade do seu entendimento sobre os problemas nacionais, em especial, de Piracicaba, que era a falta de instrução popular, a educação para todos, sem viés ideológico.

Independência frustrante

Na ocasião em que a cápsula do colégio foi colocada, para comemoração do centenário da Independência do Brasil e ser aberta apenas no bicentenário, pouco motivo havia para festejar. Marly Perecin conta em seu livro “Os 200 anos de instalação da Câmara Municipal da Vila Nova da Constituição, 1822”, que a notícia da independência chegou em Piracicaba apenas em outubro, com a Aclamação do Imperador, e não no dia 7 de Setembro. E não havia qualquer referência ao Grito de Independência ou Morte à margem do rio Ipiranga, em São Paulo. O quadro de Pedro Américo, por sinal, era uma representação alegórica inventada no período Republicano com base em um quadro do pintor francês Ernest Meissonier, sobre a Batalha de Friedland, sendo Napoleão trocado por Dom Pedro I, sem tirar nem pôr grandes informações pictóricas que evitassem a percepção clara de plágio. Pedro Américo era um pintor acadêmico que estudou arte na França entre 1859 e 1864, assim, suas referências eram a pintura europeia e a sua criatividade foi estonteante, como se pode perceber.

De trás para frente

Por isso a cápsula do tempo do Sud Mennucci deve ser vista pelo espelho, uma vez que a independência só passa a fazer sentido a partir de uma nova fase política, em que o país deixa para trás sua ordem colonial e imperial e passa a se analisar como República, como terra da liberdade. A Escola Normal nasce nessa fase turbulenta de reflexão e cumpre seu papel formando em escala professores para o ensino primário, que vão abastecer vários estados brasileiros.

Para dar vida plena a essa história deve ser levada adiante a luta pela recuperação dos murais artísticos do Sud Mennucci, pintados nos principais ambientes da escola, com uma sequência rica na parte superior.

Ainda segundo Marly Perecin, não bastasse uma camada de tinta, outra a sobrepôs e ofuscou ainda mais a grandeza de um patrimônio de extrema importância conceitual e real para o país, tornando ainda mais difícil o restauro, mas não impossível.

Com a recuperação dos murais certamente o conceito de espelho da história funcionará plenamente e os pesquisadores poderão ver nas paredes do colégio a sequência imorredoura, que demarca a República e a luta pela liberdade, que vem desde o Regente Feijó e o movimento Republicano de Itu, para que o Brasil se reencontre consigo mesmo, libertando o povo brasileiro das amarras da ignorância, fosse ele índio, negro, branco ou imigrante, todos os pobres da terra estavam no rol de “ficção jurídica”. Por isso, a o fato de Honorato Faustino ter transitado entre o 7 de setembro e o 15 de novembro, demonstra a conexão entre as datas e nos chama para a reflexão.

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