Dona Cléia deu aulas de inglês praticamente em toda rede de ensino público estadual (Mateus Medeiros/Gazeta de Piracicaba)
O local da cena é uma pintura. Um amplo quintal de uma antiga moradia da rua XV de Novembro, no coração urbano de Piracicaba. Casa ao fundo, despretensiosa. Árvores encopadas, muitas plantas no jardim. Uma rede de descanso, preguiçosa. Um balanço à espera de uma criança. Raios de sol da tarde salpicando a pele dos convivas. A rusticidade do local cria um ambiente sóbrio, quase estático, como um quadro desenhado pelos velhos figurativistas da cidade, ávidos pela luminosidade natural da terra. O olhar curioso do observador converge para o aspecto mais relevante do cenário: uma senhora sentada em sua cadeira questionando o motivo daquele momento.
É dona Cléa do Amaral Manfrinato, tirada dos seus afazeres para contar um pouco de sua história de vida. “Não tenho nada de interessante a dizer. Fui apenas uma simples professora de ensino pré-primário e de inglês, que entrou na cena de Piracicaba pelo acaso”, insistia. Aos 93 anos de idade e uma vida dedicada à educação, à cultura e à família, não necessariamente nesta ordem, acompanhou a dinâmica da cidade com olhar atento e, à sua maneira, cumpriu um papel essencial para a formação de várias gerações de alunos que tiveram o privilégio de tê-la em uma sala de aula ensinando o caminho para o mundo: “Do you speak english?”
Não foi apenas isso. Todos os Manfrinatos que viveram e vivem sob aquele teto tiveram as condições necessárias para se desenvolver na plenitude e avançar na vida. Nesse rol estão Angela Coda, Hélio Almeida Manfrinato Jr., Davi Manfrinato, Marcos do Amaral Manfrinato, Warwick Manfrinato, Lilia do Amaral Manfrinato Justi e o velho Hélio Almeida Manfrinato. O pai foi engenheiro agrônomo, professor da Esalq, com forte talento musical. Era maestro, locutor, empresário e pesquisador. Eles se casaram no dia 7 de março de 1951. Mas esta parte é apenas o introito de um roteiro que guarda muitos detalhes cativantes.
Origem e projeto de vida
Dona Cléa nasceu perto da Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, em Sapucaia. Passou a infância em Morsing, “um lugarejo rural”, como ela gosta de recordar. Era filha de um comerciante metodista, que mantinha a família sempre em sintonia com a dinâmica da igreja local. Depois de fazer o primário e ginásio na escola pública do bairro, seu pai conseguiu que ela fosse para o internato do Colégio Metodista do Rio de Janeiro, Bennett, onde fez o colegial. Sob o comando da americana Heloyse Hyde, conviveu com um grupo de missionárias que falavam apenas o inglês. Com isso, ela acabou assimilando o idioma, que a projetou para além de suas fronteiras.
“Recordo que o professor Josafá de Araújo Lopes, diretor do Colégio Piracicabano, escreveu para Heloyse perguntando se ela tinha por lá alguma recém-formada que pudesse dar aula aqui, porque era muito difícil encontrar professora que soubesse falar inglês. Na ocasião, além da formação acadêmica recente, eu estava me preparando para casar. Mesmo assim, acabei aceitando o convite e vim morar no internato do Colégio Piracicabano para dar aula aos alunos do jardim de infância”. Seu dinamismo, no entanto, não a permitiu se acomodar. “Fiquei apenas dois anos nessa função, até que a professora de inglês do Sud Mennucci, Yolanda Munhoz, precisou tirar licença. Como não havia substituto para ela, me dispus a dar aula em seu lugar após ser convidada”. Quando sua habilidade para a língua estrangeira se tornou conhecida, rapidamente foi convidada também para assumir a função de professora na rede pública de ensino.
Como toda boa metodista, o canto-coral era uma atividade muito presente em seu cotidiano. Com isso, ela passou a atuar nos grupos musicais da Igreja e a frequentar as atividades da Sociedade de Cultura Artística, onde conheceu muitas pessoas importantes, como dona Cidinha Mahle e o maestro Ernst Mahle. Inclusive, todos os seus filhos passaram pela Empem. Só que havia um outro maestro de olho em Cléa Manfrinato. Ele comandava o coral da Igreja Metodista. “Hélio queria me namorar, mas eu dizia que já tinha um namorado em Barra do Piraí e ia me casar. Ele insistiu, insistiu, insistiu. Acabei trocando um engenheiro civil por um engenheiro agrônomo”.
A história de sua vida ganhou assim um novo ritmo. Moradora do Bairro Alto desde que chegou em Piracicaba, apenas trocou de casa uma vez, para se fixar definitivamente na rua XV de Novembro. Além dos filhos, da música e dos afazeres domésticos, deu aulas de inglês praticamente em toda rede de ensino público estadual, como Sud Mennucci, Mello Ayres, Alfredo Cardoso, enfim. Formosa e vocacionada, Cléa era a professora do sonho de muitos meninos. Questionada se há ainda aqueles que se lembram dela, sorri e confirma que até hoje é apontada na rua como a professora de várias gerações. “Eles gostam de mim, porque eu gosto de todos eles”.
O genro de dona Cléa, casado com a pianista Lilia, o oboísta e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Luis Carlos Justi, recorda a forte influência da sogra em sua vida: “Estou entre os inúmeros piracicabanos que tiveram a sorte de contar com duas dádivas que Piracicaba ofereceu a tantos de seus filhos: o Colégio Sud Mennucci e a professora Cléa do Amaral Manfrinato. Professora ideal em todos os aspectos, conseguia fazer com que os mais terríveis alunos se interessassem pelas suas aulas e pela língua inglesa, levando-os à leitura, à cultura e à música. Todos nós cantávamos em inglês. E aprendíamos! “
Ele observa também que até hoje dona Cléa, andando pela cidade ouve vez em quando vozes vibrantes de transeuntes cantando em sua homenagem: “My bonnie lies over the ocean”, ou “One little, two little, three little indians”. “É a eterna professora que tanta gente amou e ama até hoje! Sempre brinquei com ela dizendo que, tivesse ela se candidatado a algum cargo político, teria sido eleita com certeza. E, sem nenhuma dúvida, a cidade teria ainda mais a agradecer à inspiradora figura da mestra”.
Arremata Justi: “Dona Cléa significou e significa para mim um exemplo de vida, de dedicação aos outros, tantas vezes com sacrifícios do próprio conforto, das próprias vontades e exigências. Pensando bem, dedicação não é a palavra correta. Doação seria mais adequada e mais verdadeira. Somente pessoas que conseguem ter uma vida plena conseguem se doar da forma como ela se doa. Em meio aos maiores problemas, que todos temos, uns mais outros menos, ela se mantém numa fé inabalável de que nada como um dia após o outro. O que não podemos resolver, o tempo (Deus, talvez?) vai resolver. Sua convicção de que as coisas têm uma razão de ser e de que vão melhorar é a base de sua fé. Com ela aprendi inglês. Queria ter aprendido também como ter a sua fé!”
Ah!... O encontro com a reportagem terminou com pão caseiro e café. “Minha vida é simples”, finalizou a entrevistada.