Tempo de reflexão

Natal da fé, amor, caridade e fraternidade

O Natal para os cristãos remete à importância da fé, do amor, da caridade e da fraternidade na vida das pessoas, no enriquecimento das relações familiares e sociais

Romualdo Cruz Filho
24/12/2022 às 08:37.
Atualizado em 24/12/2022 às 08:39
Dom Devair fala de valores fundamentais que refletem a importância da fé, do amor, da caridade e da fraternidade na vida das pessoas (Christiano Dihel Neto/Gazeta de Piracicaba)

Dom Devair fala de valores fundamentais que refletem a importância da fé, do amor, da caridade e da fraternidade na vida das pessoas (Christiano Dihel Neto/Gazeta de Piracicaba)

O Natal é um evento eminentemente cristão. Delimita uma nova era no ocidente, com o nascimento do filho de Deus: Jesus Cristo. Os valores morais, éticos e sociais defendidos pelas pessoas que comungam dessa crença, integram uma plataforma de conduta humana, que pode ser sintetizada pela fé, caridade e fraternidade. A ideia de 'que somos todos irmãos' deveria, portanto, pautar, segundo o cristianismo, a conduta de cada um em prol do bem comum e da coletividade. Uma postura integral e perene, não revelada apenas no Natal.

O cristianismo é, ou deveria ser, uma ordem para enfrentar a vida e alcançar a verdade das coisas, como se antecipou o filósofo grego Platão, em Fédon (Ou Da Alma), uma de suas obrar mais paradigmáticas, uma vez que nasce em um contexto politeista, mas que se encaminha para o conceito de Uno, entendido séculos após como Deus único a se revelar em sua força orientadora do conhecimento, numa espécie de 'terceira navegação' filosófica, na fala de outro grande estudioso da filosofia clássica: Giovanni Reale. 

O texto que segue é parte do último discurso de Sócrates na prisão, antes de sua morte, uma vez que ele foi condenado a tomar cicuta, colocando fim a sua própria vida. Condenação que aceitou sem medo ou ressentimento. Apenas lamentou o grande equívoco dos homens que decidiram o seu destino. Tendo seus seguidores ao redor, ele resolve tranquilizá-los sobre a morte iminente e o destino de sua alma. É um ensinamento sobre o poder da filosofia e da fé diante da vida. 

"De duas coisas lhe cabe fazer uma ou outra: ou aprender ou descobrir a verdade a respeito dessas duas coisas ou, diante da impossibilidade disso, adotar a teoria humana que lhe pareça melhor e de mais difícil refutação, nela embarcar como numa jangada a navegar ao longo da vida em meio aos perigos - a menos que possa navegar com maior segurança e menos riscos numa embarcação mais sólida e robusta de alguma doutrina divina. Assim, agora, uma vez que me estimulaste a agir dessa maneira, não me sinto envergonhado de fazer perguntas, e não me censurarei no futuro por não ter dito o que penso".

Haveria uma outra base de valores que nos dariam um mínimo de estrutura capaz de substituir o cristianismo e ordenar com grandeza a vida das pessoas e a ordem social? Na história do cristianismo, conforme contada pelo inglês Christopher Dawson, houve momentos de tensão que levaram desnecessariamente à ruptura da dogmática padrão, criando vertentes diferentes, como o próprio protestantismo, que prejudicaram sobremaneira a preservação da unidade de um movimento que ele considerava a matriz da cultura europeia e, consequentemente, ocidental.

Depois de viver parte expressiva da sua vida sob orientações protestantes, seguindo a tradição familiar, o próprio Dawson (1889-1970) migrou, durante sua fase adulta, para o catolicismo e morreu acreditando na possibilitade de um retorno à unidade da ordem cristã, com a superação de impasses consolidados a partir das ideias defendidas por Martinho Lutero, no início do século 16, na Alemanha. Segundo ele, conflitos desnecessários e, se não resolvidos, pelo menos reconhecidos pelo tempo e passíveis de superação, ou de convivência pacífica possível.

Dom Devair

O bispo da Diocese de Piracicaba, Dom Devair Araújo da Fonseca, em entrevista exclusiva à Gazeta, fez uma leitura interessante sobre o Natal e também, como Dawson, visa uma nova ordem de relações sociais, mais harmoniosa e fraterna, tendo o cristianismo como norte para as famílias, mas sem interferir nas escolhas diferentes das demais famílias. Ele avança também para a perspectiva platônica, e clama aos cristãos para que ergam suas bandeiras nesse mar turbulento e revelem o poder da fé no filho de Deus, tanto para aqueles que comungam da mesma orientação religiosa como para os demais.

"Procuro pensar na tese do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que escreveu o famoso livro 'Modernidade Líquida'. O mundo se tornou muito complexo, um mar onde se misturam diversas formas de compreender a realidade. Há ateus, céticos, de outras matrizes religiosas e até sem qualquer religião, enfim, pessoas e, consequentemente, famílias que não foram formadas a partir de parâmetros cristãos e temos que aprender a conviver com todos eles. Há ainda o peso da economia nessas relações. No entanto, os cristãos precisam se conscientizar de sua missão, que é demonstrar a força dos símbolos e valores que os norteiam e organizam suas vidas. Esses valores são fundamentais, pois refletem a importância da fé, do amor, da caridade e da fraternidade na vida das pessoas, no enriquecimento das relações familiares e sociais. A partir desse ponto de vista, podemos analisar melhor o significado do Natal", explica Dom Devanir.

Fator comercial

Quanto ao peso comercial no Natal, Dom Devair exercita sua tese afirmando que não há nada de mal em presentear todos aqueles com quem convivemos. Não há nada de mal em manter a crença das crianças no Papai Noel, na confraternização festiva. São coisas bonitas e necessárias.

"O que não podemos é nos esquecer que por traz disso tudo existe um Deus verdadeiro e um filho de Deus que foi enviado para nos salvar. Um Jesus Cristo, mensageiro da fé e da esperança. É na manjedoura que está o mistério e não a bordo do trenó".

Dom Devair vê com certo desencanto o poder do comércio sobre os valores simbólicos da cristandade. "Essa força enfraquece a relação das famílias, até mesmo as cristãs, com o que deveria ser fundamental e o fundamental fica em segundo plano".

Ao mesmo tempo em que ele percebe na pós-pandemia (Covid-19) o fortalecimento das famílias cristãs, que voltam gradativamente a se encontrar e planejar ações de interesse social e de forma coletiva. Um dos sucessos no trabalho deste ano, ele destaca é a Associação Exército de Formiguinhas, ligada à Diocese, que, mesmo diante das intempéries, conseguiu resultados positivos na coleta de cestas básicas para as famílias carentes.

"Tem sido cada vez mais difícil despertar a solidariedade e a fraternidade no coração das pessoas, mas o empenho e a determinação desse grupo têm sido maiores que o ceticismo. Esta é a solidariedade verdadeira, que deveria estar presente todos os dias do ano, não apenas no período Natalino".

Valores o ano todo

O desenrolar desse diálogo culmina em uma constatação antiga e básica: não é preciso ser Natal para que se desperte nas pessoas a caridade, o amor, a fraternidade, o desejo de ajudar. "O desejo de ajudar é a matriz dos ensinamentos de Jesus Cristo. Ele próprio veio para nos salvar. Este nascimento que estamos comemorando, e que deveria estar presente em nossos corações, independente do calendário festivo", disse. Devair recorda o que o Papa Bento 16 destacou em uma de suas prelações que o cristianismo é forte enquanto sinal e não enquanto número.

"Se o mundo líquido esconde a presença de Deus, a celebração de Natal tem de ser marcada pela posição cristã. O mundo líquido precisa de valores fortes para se refencializar, para se ordenar e seguir adiante". Parafraseando Platão, em síntese de Reale, o lenho da fé seria um barco seguro nessa nossa travessia.

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