Revolução de 32

Uma batalha contra o tempo para evitar o esquecimento desta data

Edson Rontani Júnior, pesquisador sobre o assunto e autor do livro Cartas a Piracicaba, conta fatos e curiosidades que ligam Piracicaba ao fato histórico

Romualdo Cruz Filho
09/07/2022 às 08:22.
Atualizado em 09/07/2022 às 08:24
Revolução de 1932 levou a uma Nova Constituinte, capaz de representar com mais clareza os desejos da República (Mateus Medeiros)

Revolução de 1932 levou a uma Nova Constituinte, capaz de representar com mais clareza os desejos da República (Mateus Medeiros)

A data 9 de julho para São Paulo deveria se manter como uma referência para o desenvolvimento institucional do país e ser comemorada com a devida distinção em Piracicaba, por se tratar de um movimento que não apenas comoveu como envolveu os piracicabanos, deixando marcas indeléveis na memória de muitas famílias de voluntários locais que lutaram e morreram em campo de batalha. Bem como foi fator de mudanças drásticas na ordem constitucional do país.

Graças ao conflito, que colocou os voluntários paulistas em confronto direto com o exército de Getúlio Vargas, a Revolução de 1932 levou a uma Nova Constituinte, capaz de representar com mais clareza os desejos da República, que resultou na Constituição aprovada em 1934. Carta máxima definidora da separação dos poderes entre Legislativo, Executivo e Judiciário, que estabeleceu o habeas corpus, a gratuidade do ensino para adultos, entre outras conquistas para a sociedade. 

Edson Rontani Júnior, autor do livro Cartas a Piracicaba, que será lançado com produção independente, em outubro deste ano, quando se comemora o encerramento da Revolução Constitucionalista de 1932, lembra que se trata da data redonda, de 90 anos, que precisa ser lembrada. "Ela não pode ser deixada ao esquecimento".

Para dar a devida dimensão histórica a tudo o que aconteceu, Rontani Jr. pesquisou nos jornais da cidade as cartas escritas na trincheira pelos voluntários, que eram entregues pelo Correio Militar aos seus familiares. "Muitos piracicabanos estiveram nos fronts de batalha, especialmente na região Norte do Estado, na divisa com Minas Gerais, Mato Grosso e Rio de Janeiro, então capital da República, e mandavam de lá suas cartas aos seus familiares. Criou-se então o Correio Militar. Esse sistema de troca de correspondência era responsável pela comunicação entre entes queridos, mas que reverberavam pela cidade a partir da publicação pelos jornais". 

Segundo o pesquisador, muito do que aconteceu de fato em regiões de combate, como a Serra da Mantiqueira, só pode ser conhecido por meio dessas cartas. "Eram relatos do cotidiano no front. Tivemos poucos correspondentes, mas um deles se destaca: Mário Neme, um grande intelectual da cidade, bastante conhecido também no campo jornalístico. Ele foi um dos voluntários da revolução, dentre tantos, que pegaram em armas e, na trincheira, relataram esse momento histórico".
Memória de Família

Rontani Jr. conta que cresceu ouvindo em família informações sobre o episódio. "Minha avó Julieta D'Abronzo contava que ela havia perdido um irmão, portanto, um tio avô meu, na Revolução de 1932, aos 17 anos. Ele fugiu de casa e foi para a cidade de Silveiras, em uma região montanhosa, na divisa com Minas Gerais. Foi alvejado pela tropa da polícia de Pernambuco, fiel ao governo Getúlio Vargas. Ele deixou uma saudade imensa na família. A carta de despedida dele, enviada no dia 22 de agosto, foi guardada a vida inteira a sete chaves pela minha avó e minha tia. Fiquei muito sensibilizado pela história, que me inspirou a ir em busca de outras correspondências e relatos de pessoas que aqui viveram e compartilharam experiências semelhantes. Isso resultou em um painel intimista e ao mesmo tempo bastante explicativo sobre aquela realidade".

Suas pesquisas foram feitas nos jornais Gazeta de Piracicaba, Jornal de Piracicaba e O Momento. "Cheguei à conclusão de que a principal fonte de informação sobre a guerra para Piracicaba era realmente as cartas. Elaborei então um relato sobre tudo o que consegui levantar. Assumi a missão como se fosse uma responsabilidade, como um representante das famílias ligadas ao meu tio e de todas aquelas que compartilharam esses momentos de tamanho temor". 

O conflito bélico foi iniciado por um mal-estar ocorrido em 23 de maio de 1932, quando pessoas ligadas ao Partido Republicano Paulista (PRP) matam Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, o famoso (MMDC) em São Paulo, na capital paulista, o que provocou, inicialmente, ações isoladas. "O Dráusio tinha 15 anos de idade. O grupo era formado por jovens entre 15 e 29 anos de idade e esse acontecimento cruel acabou provocando comoção no estado. Mas a Revolução em si começou apenas em 9 de julho". 

Piracicaba não entrou no exato momento em que a Revolução teve início, em 9 de julho. As informações começam a circular pela cidade lá pelo dia 13, 14. "Tanto é que no dia 12 tivemos uma reunião no Teatro Santo Estevão com objetivo de convocar piracicabanos e formar um batalhão. O primeiro batalhão formado saiu de Piracicaba no dia 16 de julho daquele ano, partindo da Estação da Paulista".

Piracicaba estava longe de ser um front de batalhas, com sobrevôos de teco-teco, como aconteceu com Campinas e Jundiaí, conta o pesquisador. "Os aviões não tinham autonomia para chegar, por exemplo, de Mato Grosso até Piracicaba. Eram aviões pequenos, para duas pessoas. Mas em Campinas houve ataques aéreos, apesar de serem aviões de passeio, sem fins bélicos. Aldo Chioratto, um escoteiro de 9 anos, morreu naquela cidade em decorrência de estilhaços de granada lançada por um avião teco-teco. A improvisação era total, com granadas e revolver 38. Não havia metralhadoras e armas de grande poder de fogo nos aviões".

Fatos marcantes

Piracicaba, segundo ele, se comoveu de forma mais aguda com a morte de Ennes Silveira Mello, o primeiro voluntário da cidade a perder a vida na Revolução de 1932. "Depois vieram outros, que estão descritos no monumento instalado na Praça José Bonifácio". 

Rontani Jr. conta ainda que há registros curiosos sobre o período. "A cidade ficou em polvorosa por duas ocasiões, porque foi decretado toque de recolher e em uma noite todo mundo ouviu barulho no rio Piracicaba. Um barco com motor antigo fazia um barulho de estouro. Chegou-se a pensar que a revolução estava chegando pelas águas. As pessoas diziam: 'Agora vamos ser invadidos'. Mas, assim como o barco veio, partiu. Outro caso ocorreu à noite e não foi percebido mais nada no dia seguinte, além da memória do barulho. O barulho de um avião proveniente da região de Rio Claro também causou trauma. A cidade parou pensando que fosse uma invasão. Houve prontidão com armas para reagir, mas o avião passou reto e não era nada. Era apenas alguém que perdeu a rota". 

A conclusão do pesquisador é que havia ufanismo, mas que era incompatível com os fatos reais. "Acreditava-se na adesão de outros estados contra o governo central, mas essa adesão não aconteceu e São Paulo ficou isolado. Falava-se inclusive sobre a separação de São Paulo do resto do país, mas isso era impossível. Vivia-se a política do Café com Leite, São Paulo e Minas Gerais costumavam se alternar no poder central e São Paulo era a força motriz do país. Assim, supunha-se que a vitória em 1932 seria natural, mas isso também não ocorreu. Muito pelo contrário. Todos os demais estados acabaram se unindo contra São Paulo e nossos voluntários foram humilhados. Passaram frio, fome e adoeciam no front de batalha". 

Dentre os mais de 600 soldados do Estado de São Paulo que morreram durante a revolução, a maioria teve morte cruel. O adversário também não era muito bem visto, uma vez que a Força Pública (hoje Polícia Militar) era composta de pessoas sem piedade, que anos antes combateram os jagunços no árido do Norte e Nordeste. A morte de Lampião e seus cangaceiros é um exemplo de como estes tratavam os aniversários. "Não é à toa que o segundo pelotão piracicabano teve a alcunha de Coluna Maldita. Pelos jornais da época, eram pessoas boas. Mas temos relatos de que eram grandes mercenários, impiedosos e botavam medo em seus oponentes. São Paulo é vendido como tendo sido o santo do momento. Mas a história é contada por quem vence. Queríamos sim participar e influenciar no processo político nacional. Era um fervor patriótico. As mulheres iam para o Colégio Moraes Barros, o quartel general da Revolução em Piracicaba, para cerzir roupa e preparar material para o front. Temos notícia de que cerca de 2 mil a 2,5 mil pessoas da cidade se envolveram em ação em prol de São Paulo. Sendo que de 600 a 700 piracicabanos foram para o front", relata.

Há ainda os episódios pitorescos, como os decretos do então prefeito Luiz Dias Gonzaga, para que os piracicabanos doassem bala de winchesters, cigarros, roupas de frio, cobertores, tecidos enfim. "Porque faltava de tudo. Rifles e capacetes eram importados da Inglaterra. Os navios eram interceptados nos portos e nada chegavam nas cidades rebeladas. Era inverno de zero grau na Serra da Mantiqueira, por exemplo. Luiz Dias Gonzaga decretou, ainda, por falta de matéria prima, que o filãozinho seria o pão de guerra, com o menor peso. O comércio se movimentou para que houvesse a distribuição de querosene para veículos. A Associação Comercial e Industrial (Acipi) foi criada um ano após a guerra, em 9 de julho de 1933. Data escolhida por causa da participação do comércio local no movimento".

Em São Paulo foram treinados pela Força Pública 90 mil voluntários. "Tivemos jornalistas, médicos, farmacêuticos, pedreiros, a Legião Negra, a Legião de Funcionários Públicos, a Legião Esportiva, composta inclusive por jogadores do XV, Portuguesa e São Paulo. Eram agrupamentos de determinadas áreas da sociedade. Era um exército com habilidade limitada em seu poderio bélico e de treinamento. Não podemos nos esquecer da 'guerra da matraca' para simular o som da metralhadora. Criou-se uma ilusão de que as coisas corriam bem, mas as necessidades dos soldados paulistas eram imensas".

Para Edson Rontani Júnior, a comemoração do 9 de julho está caindo em desuso. "Mas tem havido esforços em todo o estado para renovar essa memória. O feriado estadual, criado por Mário Covas, em 1997, tinha essa finalidade. Em Piracicaba, desde 1932, até o último voluntário, tivemos seus familiares envolvidos nas solenidades. Isso se deu até 2019. Inclusive porque o vereador João Manoel dos Santos criou a obrigatoriedade do evento. Hoje seus netos não se interessam mais pelo assunto. Todo mundo sabe o significado do 4 de julho (Independence Day) para os americanos e estão se esquecendo o nosso 9 de julho. Mas não gostaríamos que, passados os 90 anos da data, tudo voltasse ao esquecimento. Mas esta é a tendência. Vamos à José Bonifácio e vemos o monumento coberto com restos de lanche, marmitex, lixo em geral. Nas escolas, os livros deixaram de contemplar esse conteúdo. Tudo isso é muito triste. Mas temos que continuar lutando para mudar este cenário. Esta é minha luta em minhas pesquisas sobre o assunto. É a milha luta com o lançamento deste livro Cartas a Piracicaba".

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